Textos


Urubu, criança, fotografia e fome

A foto em destaque (1993) correu mundo, associada ao destino do fotógrafo sul-africano Kevin Karter. Retrato pungente de um espaço permeado pela dor provocada pelo descaso político. Desde então e mesmo após sua morte, a postura de Kevin é questionada: por que não salvara a criança?

A foto tirada no Sudão arrebatou o Prêmio Pulitzer em 1994 e foi publicada pelo The New York Times. Exibe uma criança faminta sem forças para continuar rastejando até um campo de alimento da ONU, a um quilômetro de distância. No contexto, o urubu espera a morte da criança para devorá-la. Carter afirmou que aguardara em torno de vinte minutos para que o urubu fosse embora, mas como isto não ocorreu, rapidamente tirou a foto e fez o urubu fugir, açoitando-o. Em seguida, saiu do local o mais rápido possível.

Fontes de pesquisa destacam que o próprio fotógrafo criticou-se ferrenhamente por somente fotografar, mas não ajudar, a pequena criança: “Um homem ajustando suas lentes para tirar o melhor enquadramento de sofrimento dela talvez também seja um predador, outro urubu na cena.” Ressalta-se ainda sua declaração numa entrevista à Revista American Photo: “Essa foi a minha foto de maior sucesso, depois de dez anos como fotógrafo, mas não quero pendurá-la na parede. Eu a odeio!”

Compreendo que modificar a situação fática, de forma satisfatória, seria impossível a Kevin, pois o sofrimento e a agonia transcendiam os problemas arrastados ao chão por aquela pobre e infeliz criança. A denúncia, através de olhar diferenciado era seu desígnio. Isto realizou, magistralmente. Perguntem-me sobre meu pensamento e de imediato responderei: claro que socorreria a criança! Mas, quem saberá a situação vivenciada pelo fotógrafo, naquele exato momento? A condenação social imposta a Kevin parece-me ter sido sabiamente desviada, sobrecarregando-se a consciência de um profissional que tão somente cumpria o seu dever. Kevin julgou-se, às vias da auto-execução, enquanto os poderes políticos responsáveis mantiveram-se nos seus pedestais, incólumes. A criança, pelo que se divulgou depois, não precisava da ajuda de Kevin. Conta o jornal El Mundo (www.elmundo.es), que a história, até então desconhecida, pode ser resgatada na pulseira de plástico presa ao braço direito de Kong Nyong, que indicava a ajuda alimentar da ONU. Uma inscrição na pulseira revelava a sigla “T3”. A letra “T” significava indivíduos com desnutrição severa e a letra “S”, aqueles que necessitavam de alimentação suplementar. O número “3”, por sua vez, indicava a ordem de chegada de Kong Nyong ao centro alimentar. A criança, à época, com desnutrição grave, sobreviveu à fome e ao abutre. Segundo seu pai, morreu em 2006, adulto jovem, vitimado por alta febre, causada por infecção. Não por fome.
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Pois é... em 1993 fotografou-se uma criança sob a mira de um urubu, que esperava sua morte para devorá-la. No mundo animal existe mais ética piedosa do que no mundo humano? - Quantas vezes, somos devorados vivos?

Falta solidariedade humana.

E o que faço eu em relação à fome/sofrimento no Mundo? - Para além de contribuir para uma e outra instituição, atuo da mesma forma que o jornalista Kevin. Sob um olhar diferenciado, que denuncia.

Não posso ignorar os fatos do mundo real. E, neste sentido, fico com Dalai Lama (O Livro de Dias): "A acção pressupõe dois momentos: o primeiro é quando vencemos as distorções e aflições da nossa própria mente, aplacando ou até mesmo livrando-nos da raiva. Este momento é fruto da compaixão. O segundo é de carácter social, de âmbito público. Quando alguma atitude precisa ser tomada para corrigir erros neste mundo e a pessoa está sinceramente preocupada com seus semelhantes, então tem de se engajar, se envolver."

Planos traçados, mudo o foco para além das salas de aula e programo uma nova forma de intervir na realidade e contribuir para o bem estar social. Espero ser bem sucedida.

Assopro ao ar minha reflexão: conheço a foto de Kevin há tempos e acredito na sua significação para o meu desejo de realizar diferenciadas ações. Sem aquela, como saberia o alcance dos efeitos da fome? Por este motivo – se não sou fotógrafa - reconheço minha missão como escritora. Planto o germe do respeito pela dignidade humana.
 
Falo por mim, por ser meu costume fazê-lo. Não posso encontrar-me no coração e nos sentimentos alheios.

Poetas e Escritores do Amor e da Paz
Rio de Janeiro, 21 novembro 2010 às 14h45
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 10/05/2011
Alterado em 24/12/2018
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