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- Castro Alves -

Antônio Frederico de Castro Alves

Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz

Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871), poeta brasileiro, foi o último dos poetas românticos proeminentes do Brasil. Conhecido como o Poeta dos Escravos, do Povo, da Liberdade, expressou em seus poemas eloquente indignação contra os graves problemas sociais do seu tempo. Denunciou a crueldade da escravidão e elevou sua voz a favor da liberdade, atitude que outorga ao romantismo um sentido social e revolucionário que o aproxima do realismo. Sua poética espraia-se ainda pelo campo amoroso, através do qual canta a beleza e a sedução do corpo da mulher. É patrono da cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras, por escolha do fundador Valentim Magalhães.
 
Nascimento e infância
 
Antônio de Castro Alves nasce aos 14 de março de 1847, em Muritiba, Bahia, Brasil. Algumas biografias assinalam que seu nascimento se deu na fazenda Cabaceiras, a sete léguas (42 km) da vila de Nossa Senhora da Conceição de Curralinho, hoje Castro Alves, no estado da Bahia, Brasil. Isso gera equívocos, que aqui se desvenda. A fazenda Cabaceiras ficava à margem do rio Paraguaçu, em Muritiba, então comarca de Cachoeira. A casa da fazenda, restaurada, existe ainda hoje e nela está instalado o Parque Histórico Castro Alves. Desde a Constituição de 1988, o distrito de Cabaceiras desmembrou-se de Muritiba e tornou-se independente com o nome de Cabaceiras do Paraguaçu. Portanto, conforme o ponto de vista histórico, pode-se afirmar que o poeta nasceu em Cachoeira, ou em Muritiba (que é o consagrado), ou em Cabaceiras. Mas, Castro Alves não nasceu em Castro Alves.
 
Seus pais eram Dr. Antônio José Alves, médico e professor da Faculdade de Medicina de Salvador e D. Clélia Brasília da Silva Castro.
 
Em 1852, muda-se com a família para Muritiba e depois para São Félix, onde recebe as primeiras letras.
 
Em 1854, a família transfere-se para Salvador, na rua do Rosário, nº 1, sobrado onde ocorrera o assassinato de Júlia Feital, o célebre crime da bala de ouro. No ano de 1855, mudam-se mais uma vez, agora para a rua do Paço, em Salvador.
 
Em 1856, estuda no Colégio Sebrão e em 1858, no Ginásio Baiano, de Abílio César Borges, futuro Barão de Macaúbas, demonstrando vocação apaixonada e precoce para a poesia. Nesse ano, a família passa a residir no Solar da Boa Vista.
 
Adolescência
 
Em 1858, Dr. Antônio José Alves reconstrói o solar da chácara Boa Vista. Pretende que a sua esposa, exausta mãe de seis filhos, saúde frágil, ali repouse e ganhe forças, mas, contrariando as expectativas, D. Clélia morre em 1859, deixando-lhe a missão de cuidar dos filhos.
 
Castro Alves muito cedo envereda-se pelo mundo da Literatura, cujo ar renovado nasce dos oiteiros, saraus, festas de arte, música, poesia e declamação de versos. Em 9 de setembro de 1860, recita seus primeiros poemas no Ginásio Baiano e em 3 de julho de 1861, no mesmo ginásio, declama o seu primeiro poema dedicado ao 2 de julho.
 
Em 1862, seu pai contrai segundo matrimônio com a viúva Maria Ramos Guimarães. No dia seguinte à cerimônia, os dois filhos mais velhos embarcam para o Recife, onde preparar-se-ão para o ingresso na Faculdade de Direito. José António vai perturbado e ninguém consegue identificar os motivos. Aos 23 de junho, Castro Alves publica, no Jornal do Recife, "Destruição de Jerusalém".
 
Em março de 1863, Castro Alves busca sem êxito, matricular-se na Faculdade de Direito do Recife. Nesse mesmo ano publica “A Canção do Africano”, os seus primeiros versos abolicionistas e conhece a atriz portuguesa Eugênia Câmara, que se apresentava no Teatro Santa Isabel no Recife.
 
Seu irmão José Antônio, com sintomas de desequilíbrio mental, é transferido para o Rio de Janeiro e suicida-se no ano de 1864, em Curralinho. Ainda nesse ano, Castro Alves matricula-se no primeiro ano do curso jurídico e redige com colegas o jornal “O Futuro”. Escreve "Mocidade e Morte", com o título primitivo de "O Tísico". A capital pernambucana efervescia com os ideais abolicionistas e republicanos e Castro Alves recebe influências do líder estudantil Tobias Barreto. Alguns dos seus poemas mais eloquentes nasceram nessa época de estudante. Volta à Bahia em outubro, interrompendo o curso.
 
Em março de 1865, Castro Alves retorna ao Recife, em companhia de Fagundes Varela, seu grande amigo. A 11 de agosto, na data comemorativa da abertura dos cursos jurídicos, declama "O século". Passa a residir na rua do Lima, em companhia de Idalina, onde escreve diversos poemas de “Os escravos”. Alista-se no Batalhão Acadêmico de Voluntários para a Guerra do Paraguai, a 19 de agosto e em dezembro, desembarca na Bahia, em companhia de Fagundes Varela.
 
No dia 23 de janeiro de 1866, morre o pai de Castro Alves, que retorna ao Recife e matricula-se no segundo ano do curso jurídico. Com Rui Barbosa e outros colegas funda uma sociedade abolicionista. Lança o jornal “A Luz” e polemiza pela imprensa com Tobias Barreto. Em 7 de setembro, no Teatro Santa Isabel, recita "Pedro Ivo", com grande sucesso.
 
Ainda em 1866, Castro Alves inicia um intenso caso de amor com Eugênia Câmara, dez anos mais velha e que desempenhou importante papel na sua lírica e em sua vida. Em maio de 1867, partem para a Bahia, onde a atriz representaria um drama em prosa, escrito por ele "O Gonzaga ou a Revolução de Minas". Em 7 de setembro o “Gonzaga” estreia no Teatro São João, musicada pelo compositor mineiro Emílio do Lago, então residente em São Paulo. Em outubro volta a residir na Boa Vista.

A fatalidade

Em 8 de fevereiro de 1868, Castro Alves viaja para o Rio de Janeiro, sempre em companhia de Eugênia Câmara. É recebido por José de Alencar e Machado de Assis, que o ajuda a ingressar nos meios literários. A 11 de março parte para São Paulo e declama a "Ode ao Dous de Julho", no Teatro São José, com grande consagração. Em 7 de setembro recita "O navio negreiro", também triunfalmente e a 25 de outubro, estreia “Gonzaga”, no mesmo teatro. Matricula-se no terceiro ano da Faculdade de Direito de São Paulo, na mesma turma de Rui Barbosa. No fim do ano o drama é representado com êxito enorme, mas o seu espírito se abate pela ruptura com Eugênia Câmara, provocada por desentendimentos seguidos. A 11 de novembro, durante uma caçada no Brás, a espingarda dispara acidentalmente, alojando-se toda a carga no calcanhar esquerdo do poeta. Disso resultou longa enfermidade.
 
Em 1869, Castro Alves matricula-se no quarto ano jurídico, ocasião em que começa a sofrer de enfraquecimento pulmonar. A 21 de maio, chega ao Rio de Janeiro, profundamente combalido e hospeda-se na casa do seu amigo Luís Cornélio dos Santos, no intuito de salvar a vida, mas com o martírio de uma amputação. Os cirurgiões e professores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Andrade Pertence e Mateus de Andrade, amputaram seu membro inferior esquerdo sem qualquer anestesia. Mutilado, viu-se obrigado a procurar o consolo da família e os bons ares do sertão. Sua saúde, ressentida de hemoptises desde os dezessete anos, fica definitivamente comprometida. Em 31 de outubro, encontra-se pela derradeira vez com Eugênia Câmara, no Teatro Fênix Dramática e, aos 25 de novembro, embarca para a Bahia.
 
Em 1870, a conselho médico, Castro Alves segue para Curralinho, e depois para a fazenda Santa Isabel, em Orobó, onde termina “A Cachoeira de Paulo Afonso”. Volta em setembro para Salvador e, no mês seguinte, lança “Espumas Flutuantes”.
 
Alguns dos poemas de Castro Alves sofrem as piores críticas em razão do sentimentalismo em pleno século 19. O excesso de retórica reflete a tendência brasileira para a oratória e declamação. Mas, se alguns de seus piores poemas são omitidos, outros são editados. O seu trabalho surge como altamente lírico, a partir de, por exemplo, “O gondoleiro do Amor”. Suas imagens são muitas vezes poderosas e profundamente comoventes, como em “Crepúsculo sertanejo”. E mesmo a tendência de sua poesia declamatória indica o grau em que se encontrava enraizada no contexto social e histórico nacional.
 
Como a maioria dos românticos Castro Alves viu o drama do destino do homem como um eterno conflito entre o bem e o mal. O homem é pego pelos desajustes da história e foi desta forma que Castro Alves abordou o problema da escravidão humana. Forças sinistras maiores do que o indivíduo produziram a instituição vergonhosa, mas sua luta poderia, talvez, destruí-la ou pelo menos resgatar o indivíduo esmagado entre as forças criadoras de tal malefício.
 
Quando Castro Alves estava na faculdade de direito, a questão da escravidão era mais importante aos olhos do público. Embora o problema atravessasse muitos anos sem solução, as leis que lidavam com essa instituição eram muito debatidas. E foi nesta discussão que Castro Alves se jogou. A vocação do poeta revelava as mazelas impregnadas nas camadas sociais, sobretudo a situação opressora predominante nas senzalas brasileiras, com os negros a viver em meio aos ditames e aos castigos dos seus senhores. Fazia-se necessário que alguém clamasse pelo grito de liberdade, no intento de despertar a consciência por um mundo mais igualitário e mais justo. Tais objetivos materializaram-se em diversas obras. Talvez, seu poema mais frequentemente citado seja ”O Navio Negreiro”, uma conta do comércio de escravos Africano em proporções épicas. Em muitos de seus outros poemas, por exemplo, na coleção “Vozes d’África” (1880), o poeta imaginou o Africano não só como um herói, mas também como um amante, uma figura verdadeiramente humana. Para ter certeza, Castro Alves não fugiu do seu tempo: enriqueceu seus africanos com qualidades "brancas", ainda que alterasse sua fisionomia. Por isso foi capaz de convencer alguns brancos que, de fato, os africanos eram como eles no amor, na tristeza, na raiva, na ternura e, portanto, por que não na lei?
 
A morte de Castro Alves
 
Apesar do declínio fisico, em 1871, Castro Alves produziu alguns dos seus mais belos versos, animado por um derradeiro amor, este platônico, pela cantora italiana Agnèse Trinci Murri. Recita pela última vez, a 10 de fevereiro, na Associação Comercial, em benefício das crianças francesas vítimas da Guerra Franco-Prussiana. Seu estado de saúde agrava-se após a noite de São João. Morre às três e meia da tarde do dia 6 de julho, no Palacete do Sodré, junto a uma janela banhada pelo sol.
 
Apenas um livro dos seus poemas, “Espumas flutuantes” (1870), foi publicado antes da sua morte, mas outros foram emitidos a título póstumo. Em 1875, publicou-se “Gonzaga”; em 1876, “A Cachoeira de Paulo Afonso” e, em 1880, “O escravos”.
 
Terminamos esta exposição, com um trecho da biografia de Castro Alves, exposta no site da Academia Brasileira de Letras: “Dele ressalta a figura do bardo que fulmina a escravidão e a injustiça, de cabeleira ao vento. A dialética da sua poesia implica menos a visão do escravo como realidade presente do que como episódio de um drama mais amplo e abstrato: o do próprio destino humano, presa dos desajustamentos da História. Encarna as tendências messiânicas do Romantismo e a utopia libertária do século. O negro, escravizado, misturado à vida cotidiana em posição de inferioridade, dificilmente se podia elevar a objeto estético, o que ele alcançou, no entanto, numerosas vezes. Surgiu primeiro à consciência literária como problema social, e o abolicionismo era visto apenas como sentimento humanitário pela maioria dos escritores que até então trataram desse tema. Só Castro Alves estenderia sobre o negro o manto redentor da poesia, tratando-o como herói, como ser integralmente humano.”
 
Alguns poemas de Castro Alves
 
O GONDOLEIRO DO AMOR
 
Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;
 
Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
do Gondoleiro do amor.
 
Tua voz é a cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento;
 
E como em noites de Itália,
Ama um canto o pescador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.
 
Teu sorriso é uma aurora,
Que o horizonte enrubesceu,
-Rosa aberta com o biquinho
Das aves rubras do céu.
 
Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.
 
Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;
 
Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no languor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?...
 
Teu amor na treva é - um astro,
No silêncio uma canção,
É brisa - nas calmarias,
É abrigo - no tufão;
 
Por isso eu te amo querida,
Quer no prazer, quer na dor...
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.
 
CREPÚSCULO SERTANEJO
 
A tarde morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.
 
A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.
 
A tarde morria! Mas funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.
 
Sussurro profundo! Marulho gigante!
Talvez um — silêncio!... Talvez uma — orquestra...
Da folha, do cálix, das asas, do inseto...
Do átomo — à estrela... do verme — à floresta!...
 
As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas, — da brisa ao açoite —;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co'as penas da noite!
 
Somente por vezes, dos jungles das bordas
Dos golfos enormes, daquela paragem,
Erguia a cabeça surpreso, inquieto,
Coberto de limos — um touro selvagem.
 
Então as marrecas, em torno boiando,
O vôo encurvavam medrosas, à toa...
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!...
 
A CANÇÃO DO AFRICANO
 
Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão...
 
De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar...
E à meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez pra não o escutar!
 
"Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem;
Esta terra é mais bonita,
Mas à outra eu quero bem!
 
"0 sol faz lá tudo em fogo,
Faz em brasa toda a areia;
Ninguém sabe como é belo
Ver de tarde a papa-ceia!
 
"Aquelas terras tão grandes,
Tão compridas como o mar,
Com suas poucas palmeiras
Dão vontade de pensar ...
 
"Lá todos vivem felizes,
Todos dançam no terreiro;
A gente lá não se vende
Como aqui, só por dinheiro".
 
O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala
O fogo estava a apagar;
E a escrava acabou seu canto,
Pra não acordar com o pranto
O seu filhinho a sonhar!
 
O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.
 
E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio do sono,
De seus braços arrancá-lo!
 
O LIVRO E A AMÉRICA
 
Talhado para as grandezas,
Pra crescer, criar, subir,
O Novo Mundo nos músculos
Sente a seiva do porvir.
— Estatuário de colossos —
Cansado doutros esboços
Disse um dia Jeová:
"Vai, Colombo, abre a cortina
"Da minha eterna oficina...
"Tira a América de lá".
 
Molhado inda do dilúvio,
Qual Tritão descomunal,
O continente desperta
No concerto universal.
Dos oceanos em tropa
Um — traz-lhe as artes da Europa,
Outro — as bagas de Ceilão...
E os Andes petrificados,
Como braços levantados,
Lhe apontam para a amplidão.
 
Olhando em torno então brada:
"Tudo marcha!... Ó grande Deus!
As cataratas — pra terra,
As estrelas — para os céus
Lá, do pólo sobre as plagas,
O seu rebanho de vagas
Vai o mar apascentar...
Eu quero marchar com os ventos,
Corn os mundos... co'os
firmamentos!!!"
E Deus responde — "Marchar!"
 
"Marchar! ... Mas como?...  Da Grécia
Nos dóricos Partenons
A mil deuses levantando
Mil marmóreos Panteon?...
Marchar co'a espada de Roma
— Leoa de ruiva coma
De presa enorme no chão,
Saciando o ódio profundo. . .
— Com as garras nas mãos do mundo,
 
— Com os dentes no coração?...
"Marchar!... Mas como a Alemanha
Na tirania feudal,
Levantando uma montanha
Em cada uma catedral?...
Não!... Nem templos feitos de ossos,
Nem gládios a cavar fossos
São degraus do progredir...
Lá brada César morrendo:
"No pugilato tremendo
"Quem sempre vence é o porvir!"
 
Filhos do sec’lo das luzes!
Filhos da Grande nação!
Quando ante Deus vos mostrardes,
Tereis um livro na mão:
O livro — esse audaz guerreiro
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo...
Eólo de pensamentos,
Que abrira a gruta dos ventos
Donde a Igualdade vooul...
 
Por uma fatalidade
Dessas que descem de além,
O sec'lo, que viu Colombo,
Viu Guttenberg também.
Quando no tosco estaleiro
Da Alemanha o velho obreiro
A ave da imprensa gerou...
O Genovês salta os mares...
Busca um ninho entre os palmares
E a pátria da imprensa achou...
 
Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.
 
Vós, que o templo das ideias
Largo — abris às multidões,
Pra o batismo luminoso
Das grandes revoluções,
Agora que o trem de ferro
Acorda o tigre no cerro
E espanta os caboclos nus,
Fazei desse "rei dos ventos"
— Ginete dos pensamentos,
— Arauto da grande luz! ...
 
Bravo! a quem salva o futuro
Fecundando a multidão! ...
Num poema amortalhado
Nunca morre uma nação.
Como Goethe moribundo
Brada "Luz!" o Novo Mundo
Num brado de Briaréu...
Luz! pois, no vale e na serra...
Que, se a luz rola na terra,
Deus colhe gênios no céu!...
 
NAVIO NEGREIRO
 
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
 
'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...
 
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...
 
'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...
 
Donde vem? onde vai?  Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam, 
Galopam, voam, mas não deixam traço.
 
Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!
 
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
 
Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!
 
Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
 
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!
 
Albatroz!  Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz!  Albatroz! dá-me estas asas.
 
II
 
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
 
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!
 
O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!
 
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!...
 
III
 
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral!... Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
 
IV
 
Era um sonho dantesco... o tombadilho 
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite... 
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
 
Negras mulheres, suspendendo às tetas 
Magras crianças, cujas bocas pretas 
Rega o sangue das mães: 
Outras moças, mas nuas e espantadas, 
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
 
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala, 
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
 
Presa nos elos de uma só cadeia, 
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece, 
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
 
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."
 
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
          Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
          E ri-se Satanás!... 
 
V
 
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
 
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?   Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...
 
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .
 
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
 
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...
 
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
 
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
 
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...
 
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...
 
VI
 
Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
 
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
 
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais!... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
 
VOZES D’ÁFRICA
 
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
 
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
— Infinito: galé!...
Por abutre — me deste o sol candente,
E a terra de Suez — foi a corrente
Que me ligaste ao pé...
 
O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.
 
Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.
 
Por tenda tem os cimos do Himalaia...
Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais ...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
— Pagodes colossais...
 
A Europa é sempre Europa, a gloriosa!...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista — corta o mármor de Carrara;
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!...
 
Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
Universo após ela — doudo amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.
 
Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...
 
E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!..."
 
Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: "Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz... "
 
Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.
 
De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim ...
Onde branqueia a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim
 
Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!
 
Foi depois do dilúvio... um viadante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cam! ... serás meu esposo bem-amado...
— Serei tua Eloá. . . "
 
Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o nômade faminto corta as plagas
No rápido corcel.
 
Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d'Europa — arrebatada —
Amestrado falcão! ...
 
Cristo! embalde morreste sobre um monte
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal...
 
Hoje em meu sangue a América se nutre
Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.
 
Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dois mil anos eu soluço um grito...
escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!...
 
 
REFERÊNCIAS
 
ALVES, Castro. Poesias completas. 20. ed. Prefácio de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
 
CASTRO Alves: biografia. Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.academia.org.br/academicos/castro-alves/biografia. Acesso em: 29 jun. 2016.
 
CASTRO Alves. Vidas Lusófonas, [s. l.]. Disponível em: http://www.vidaslusofonas.pt/biografia.php?id=kIb4njzMf3w. Acesso em: 29 jun. 2016.
 
CASTRO Alves. Poesia.Net, Sao Paulo, ano 4, n. 159. Disponível em: http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet159.htm. Acesso em: 29 jun. 2016.
 
CASTRO Alves: cronologia. Projeto Memória: Banco do Brasil, Brasília. Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/CastroAlves/cronologia/cronologia.html. Acesso em: 29 jun. 2016.
 
CASTRO Alves Facts. Biography: your dictionary, Burlingame,Califórnia. Disponível em: http://biography.yourdictionary.com/castro-alves. Acesso em: 20 jan. 2016.
Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 30/06/2016
Alterado em 30/06/2016
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